Lágrima rotineira


Eram tardes frias onde o vento se ambientava e a meia luz sombreava um rosto róseo e peculiar. Tinha sob o colo um camafeu herdado, relíquia, histórias antigas intrínsecas. Perambulava entre o esquecimento e o presente pensamento, seu vestido florido traduzia o romance que detinha nas veias pálidas a tracejar seu corpo esguio; socorria o simples do plural.

Houvera tempo em que suntuosa beleza a contemplou, homens de diversas estâncias lhe faziam singelos cortejos. E quando a aurora trazia substância ao seu doce âmago, sucumbiu-lhe o que vieram a chamar de 'aquela coisa'. Desconhecida coisa que a deixava calada e imersa em lágrimas.

Se fosse doença e fosse mortal, o tempo que já estabelecida estava a coisa haveria de ter dado seu veredicto final. Ante o espelho face não reconhecia, 'estou tão velha, velha de sentimentos', sobrevoavam as moscas dos dias do encarceramento. Morria perante uma vida que corria solta em sorrisos infantis, abraços saudosos. Morria em desconforto com seu corpo intensamente magro,soterrado por olheiras e milhões de adeus.

Completara mais um ano, e fora um fardo, carregou cruz ainda mais pesada. Deram-lhe os parabéns, 'aos mortos, os vivos', trancou-se em seus devaneios. Poderia estar distante da magnitude do sangue que consome, veria pássaros a cantarem continuamente, esqueceria tanto apego. Com os olhos entreabertos avistou seus amigos ralos, escassos. 'Quanto de mim já doei, e por inteira me apeguei aos cacos?' Seguiu com a lágrima que lhe acompanhava há tanto, em um mesmo rumo, em uma desarmonia de afetos.

E a noite chegava latejante, impiedosa sorria sob seu véu translúcido e negro. Tornava os minutos lentos, os ruídos, agudos e as angústias eram a companhia constante, ao lado do abajur empoeirado, as lembranças entristecidas e os pelos dos gatos. Sofria só e socorria recordações de um navio submerso no oceano. Não era Severina, mas era morte em vida. Comprimidos corroíam seu estômago sem efeito. As horas eram inimigas dos olhos ardentes. Acompanhou as lágrimas com um resto de uísque, revirou-se incontáveis vezes na estreita cama.

O sol despontava, vislumbrou novamente sua imagem e somente as marcas das lágrimas no corredor. Acordou, permaneceu, levantou, 'mais um dia sem ter fim'. O café era seco, o pão era amargo. Sua lágrima rotineira retornou. Abriu as janelas e como se não o fizesse, as fechou. A lágrima rotineira... retornou.


 

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Outra vida


 

E se seus braços não mais se abrissem para a multidão, as flores murchassem e a sombra não mais amainasse o tórrido sol. Ficou ali, debaixo da árvore sem frutos a pensar em quantos frutos a vida lhe dera, ficou ali a intensificar sentimentos banais, uma casca de banana, sua falta de sorte; perambulava entre pensamentos. Em seu quadro negro desenhou a face obscura, se via nitidamente sem cor, a sirene da morte, o cigarro que acendera para espantar o sono e as letras para escrever em um papel que só continha linhas. Linhas de juventude, seus negros cabelos pairavam sob a caneta e se mantinha enclausurada em pensamentos. Fora o adeus que a manteve por tanto tempo sob os pés que hoje negava a coloração gris de seus lábios. Quis voltar os anos, rabiscou desenhos de menina. Sobrevoava a paisagem crua do mar sem nuvens escapando assim do que um dia poderia sucumbi-la. Pelo beijo que lhe foi dado, teceu sonhos por um segundo. Vivenciou os antigos castelos, fora princesa, adormeceu. E ante seu caderno de linhas nulas, a perplexidade da lágrima. Trouxe em si sonhos guardados, são pensamentos intrínsecos e mal arranjados, amassou sua folha e esqueceu que escrevia sobre uma outra vida.

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