Sem sombra

E sem sombras escancarou face grácil e árdua. Tinha dentes borrados, os olhos enterrados em um mundo inventado. Vestiu o melhor linho, dentro o qual, carne fria. Fria para jamais se descobrir quente. Uma auto-sabotagem. Abriu, sorriu. Sem palavras perpetuou uma nação. Fecha para o que vê e cega a razão. Suas artérias obstruídas é só um pedaço, seu desejo reprimido, sua falsa superioridade. E hipócritas são os que falaram às sombras e esperaram uma boa resposta.

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Reuso

Hei de refutar os olhos secos na multidão, o trânsito lento e a acidez lacerante. Hei de hesitar os dias passados em branco em cidade cinza, revendo os muitos que são prédios em rostos singularmente traçados, despedaçados pela rotina. Longe o pássaro sobrevoa a paisagem metropolitana, o cego atravessa a esmo, o morador de rua entristece fotografias. Existem sombras do passado presentes em cada tilintar de barulho, saio adentro em um corredor fundo e me oponho à realidade. O vapor desce as escadas, as soleiras não acomodam calçados. Vozes são ásperas, telas estreitas, música de reuso. Sequer adormeço e desperto com o mais que certo sonoro e vibrante barulho do moderno intrínseco. Tomo a bebida usual, ante milhões sou comum, e ante tantos sou o que sobrou do peculiar.

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Sílaba

As sílabas que desenham teu rosto permeiam minhas lembranças, onde desenho sopros de vida com bolas de sabão a contemplar o mar. Porque fora intensidade desde o primeiro vento, se tornara um ínfimo e essencial pedaço de minha essência, costurava as ondas onde pairavam as gaivotas, percorria o céu e com nuvens te vislumbrava.

Detinha o momento, sílabas formavam estruturadas palavras em um painel de cores. Já vivia em compasso fino com o real e o imaginário, o consciente não menos inconsciente... Cerrava os olhos e estava lá: bata branca e cabelos lisos e negros, e o mar.

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Lágrima rotineira


Eram tardes frias onde o vento se ambientava e a meia luz sombreava um rosto róseo e peculiar. Tinha sob o colo um camafeu herdado, relíquia, histórias antigas intrínsecas. Perambulava entre o esquecimento e o presente pensamento, seu vestido florido traduzia o romance que detinha nas veias pálidas a tracejar seu corpo esguio; socorria o simples do plural.

Houvera tempo em que suntuosa beleza a contemplou, homens de diversas estâncias lhe faziam singelos cortejos. E quando a aurora trazia substância ao seu doce âmago, sucumbiu-lhe o que vieram a chamar de 'aquela coisa'. Desconhecida coisa que a deixava calada e imersa em lágrimas.

Se fosse doença e fosse mortal, o tempo que já estabelecida estava a coisa haveria de ter dado seu veredicto final. Ante o espelho face não reconhecia, 'estou tão velha, velha de sentimentos', sobrevoavam as moscas dos dias do encarceramento. Morria perante uma vida que corria solta em sorrisos infantis, abraços saudosos. Morria em desconforto com seu corpo intensamente magro,soterrado por olheiras e milhões de adeus.

Completara mais um ano, e fora um fardo, carregou cruz ainda mais pesada. Deram-lhe os parabéns, 'aos mortos, os vivos', trancou-se em seus devaneios. Poderia estar distante da magnitude do sangue que consome, veria pássaros a cantarem continuamente, esqueceria tanto apego. Com os olhos entreabertos avistou seus amigos ralos, escassos. 'Quanto de mim já doei, e por inteira me apeguei aos cacos?' Seguiu com a lágrima que lhe acompanhava há tanto, em um mesmo rumo, em uma desarmonia de afetos.

E a noite chegava latejante, impiedosa sorria sob seu véu translúcido e negro. Tornava os minutos lentos, os ruídos, agudos e as angústias eram a companhia constante, ao lado do abajur empoeirado, as lembranças entristecidas e os pelos dos gatos. Sofria só e socorria recordações de um navio submerso no oceano. Não era Severina, mas era morte em vida. Comprimidos corroíam seu estômago sem efeito. As horas eram inimigas dos olhos ardentes. Acompanhou as lágrimas com um resto de uísque, revirou-se incontáveis vezes na estreita cama.

O sol despontava, vislumbrou novamente sua imagem e somente as marcas das lágrimas no corredor. Acordou, permaneceu, levantou, 'mais um dia sem ter fim'. O café era seco, o pão era amargo. Sua lágrima rotineira retornou. Abriu as janelas e como se não o fizesse, as fechou. A lágrima rotineira... retornou.


 

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Outra vida


 

E se seus braços não mais se abrissem para a multidão, as flores murchassem e a sombra não mais amainasse o tórrido sol. Ficou ali, debaixo da árvore sem frutos a pensar em quantos frutos a vida lhe dera, ficou ali a intensificar sentimentos banais, uma casca de banana, sua falta de sorte; perambulava entre pensamentos. Em seu quadro negro desenhou a face obscura, se via nitidamente sem cor, a sirene da morte, o cigarro que acendera para espantar o sono e as letras para escrever em um papel que só continha linhas. Linhas de juventude, seus negros cabelos pairavam sob a caneta e se mantinha enclausurada em pensamentos. Fora o adeus que a manteve por tanto tempo sob os pés que hoje negava a coloração gris de seus lábios. Quis voltar os anos, rabiscou desenhos de menina. Sobrevoava a paisagem crua do mar sem nuvens escapando assim do que um dia poderia sucumbi-la. Pelo beijo que lhe foi dado, teceu sonhos por um segundo. Vivenciou os antigos castelos, fora princesa, adormeceu. E ante seu caderno de linhas nulas, a perplexidade da lágrima. Trouxe em si sonhos guardados, são pensamentos intrínsecos e mal arranjados, amassou sua folha e esqueceu que escrevia sobre uma outra vida.

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Espelho


 

Ao chegar a noite seus passos se aconchegavam e era presente os olhos negros brilhantes em um ambiente anteriormente inóspito. Despia vestes, mas o que se via era um menino em uma enorme sala, um menino a brincar com seus novos brinquedos que até então desconhecia. Balbuciava palavras sem compreender sua intensidade, diferença já não havia entre mundos tão distantes.

Foi quando percebi os velhos sentimentos, calejados pelo tempo e pela falta de tato, a pintarem uma tela ante meus olhos. Caminhava em um curto espaço onde pensamentos viviam longe e quantos anos passaram para que me lembrasse da antiga sensação, foram os anos todos deste menino, uma vida.

Tirei o casaco e o deixei sair. O sorriso dos vinte e poucos anos e que saudade do menino que em mim viveu.


 

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dimensão


 

Qual a dimensão do ser humano?Quantificado em centímetros, ou exteriorizado em sentimentos, qual a intensidade que vive dentro de um pedaço de vida, que se não houvesse (sim, claro) a vida, seria nada. O café que se toma, 'meio açúcar, meio adoçante', todas as estâncias inseguras do amor infiel, que dimensão está dentro e se vê pequenos fiapos? Porque se tornara agressivo, tom de voz lascivo, passo firme e duro. Mostraria austeridade, a qual jamais obteve, seria dono de si e de quem tomasse sua frente. Os seus desenhos, semi coloridos, os traços, derrapados, a sua nuvem. Transbordava melodia, esta que sobrevoava as angústias pontuais de seu relógio, aos sons estridentes de uma razão a seu ver sem razão. Sua dimensão foi estar só como se quis, só de solidão.

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