Medo

O que é estar em ruínas? Vejo o sol nascer e procuro a noite, sou um ser notívago. Sento na cama e deito. Viro de lado, tento dormir. A pergunta percorre minha mente. Saberei os limites entre a dita normalidade e a patologia? Sinto meu corpo amortecer. Saboreio a falta de arestas para me dar por completo.
Há dias folheio o mesmo livro, que a meu ver, tem as mesmas palavras e conjunturas página a página. O que te comove? Um choro contido e contigo, um lapso que se dá antes do expediente. Seu lamurio é ouvido nas entrelinhas, não deixa escapar sílaba. Percebeu o relógio e se fazia dia. Seus olhos eram de ontem, as bordas já não cabiam.
Incessante na minha arte de procurar respostas.  Abro e fecho a geladeira. Passaram-se anos e o mesmo impelia o fracasso, a não vontade de ter vontade. Pois bem, sei que não vejo configurar a minha cura. Olho os remédios, náusea. Quisera elaborar todas vidas que estiveram dentro de um só eu, que fragmentado se colara inúmeras vezes.

Um vaso colado. Um retrato. Outro mundo, outros sonhos. O abajur permanecia calado, assim como o criado (mudo). Sem fechamento e sem rupturas, para quê (quem)?  F32. F31. Quantos rótulos me darão? Vasta a vida, basta a vida. Peregrina e movida a pileques.  De quem herdara? Medo do escuro, da altura imaginada, medo. Medo da vida.
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De tempos

Aquele tempo empreendido soava como perdido. Perdido dentro de uma mente que pulsa vagarosa, que temor se fez prosa; perdida em si mesma. Foi um encontro o que vivera, esquecera que também necessitava viver. Este encontro tão fortuito, intenso por momentos, dolorido por outros tantos. Tinha sido entregue ao acaso, mas que descaso pode cometer! Ao ler promessas em livros, quisera renascer. Mas o espelho não configurava coisa alguma, era dia e se fizera noite escura. As olheiras não conhecidas, as marcas transcendendo a imagem, uma imago distorcida. O adaptado construído. O perfeito elo entre si não tinha significado, se perdera. O passado estremecia. Praticava a fantasia de reviver o não vivido por diversão. Ou medo do iminente fracasso; fraca em seu ego. Perto de si voltar a estar, o engano como modus vivendi. Um campo de rosas e sangue. Tolerava sua ansiedade e agora ela a era. O cansaço por ser coisa nenhuma nunca esteve tão premente. Coisa nenhuma de dona. Havia esquecido que sua fixação anal lhe marcava, como um projétil a movimentar os pensamentos, um misto de dor e prazer. Perdera-se. Era o que dizia. Mas o universo tinha outra resposta. Tentava perder-se em seu mundo. Perdera-se.
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insiquisidor inquisidor inquisidor


Sou o verbo inquisidor, a palavra descascada, o sopro do adeus, a lembrança do presente, a distância que permance. Saboreio o meu veneno, pulsante e doce, delírios me acompanham. Possuo o eu duplo, a paranóia, psicose degradante. E corro de mim feito sombra de um corpo estranho; luz não encontro, tomo goles amargos da embriaguez por entorpecentes que produzi. Ouço discursos nos corredores, estou preso à mim, grito alto e não me faço ouvir, terei voz? Sou perseguido e perseguidor, caça e presa, doença e cura, me encontro destituído de verdade. A face esguia é o sustentáculo do copo de cinzas que tomo em soluções dramáticas; enfrento a lacerante dor de estar em um corpo perigoso. Estar em busca do inaceitável, do preocupante, do finito. Em um discurso progressivo e degenerativo, escondo o verídico em detrimento do somático. Insanidade que convém, a quem, insanidade que convém.
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Sem sombra

E sem sombras escancarou face grácil e árdua. Tinha dentes borrados, os olhos enterrados em um mundo inventado. Vestiu o melhor linho, dentro o qual, carne fria. Fria para jamais se descobrir quente. Uma auto-sabotagem. Abriu, sorriu. Sem palavras perpetuou uma nação. Fecha para o que vê e cega a razão. Suas artérias obstruídas é só um pedaço, seu desejo reprimido, sua falsa superioridade. E hipócritas são os que falaram às sombras e esperaram uma boa resposta.

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Reuso

Hei de refutar os olhos secos na multidão, o trânsito lento e a acidez lacerante. Hei de hesitar os dias passados em branco em cidade cinza, revendo os muitos que são prédios em rostos singularmente traçados, despedaçados pela rotina. Longe o pássaro sobrevoa a paisagem metropolitana, o cego atravessa a esmo, o morador de rua entristece fotografias. Existem sombras do passado presentes em cada tilintar de barulho, saio adentro em um corredor fundo e me oponho à realidade. O vapor desce as escadas, as soleiras não acomodam calçados. Vozes são ásperas, telas estreitas, música de reuso. Sequer adormeço e desperto com o mais que certo sonoro e vibrante barulho do moderno intrínseco. Tomo a bebida usual, ante milhões sou comum, e ante tantos sou o que sobrou do peculiar.

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Sílaba

As sílabas que desenham teu rosto permeiam minhas lembranças, onde desenho sopros de vida com bolas de sabão a contemplar o mar. Porque fora intensidade desde o primeiro vento, se tornara um ínfimo e essencial pedaço de minha essência, costurava as ondas onde pairavam as gaivotas, percorria o céu e com nuvens te vislumbrava.

Detinha o momento, sílabas formavam estruturadas palavras em um painel de cores. Já vivia em compasso fino com o real e o imaginário, o consciente não menos inconsciente... Cerrava os olhos e estava lá: bata branca e cabelos lisos e negros, e o mar.

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Lágrima rotineira


Eram tardes frias onde o vento se ambientava e a meia luz sombreava um rosto róseo e peculiar. Tinha sob o colo um camafeu herdado, relíquia, histórias antigas intrínsecas. Perambulava entre o esquecimento e o presente pensamento, seu vestido florido traduzia o romance que detinha nas veias pálidas a tracejar seu corpo esguio; socorria o simples do plural.

Houvera tempo em que suntuosa beleza a contemplou, homens de diversas estâncias lhe faziam singelos cortejos. E quando a aurora trazia substância ao seu doce âmago, sucumbiu-lhe o que vieram a chamar de 'aquela coisa'. Desconhecida coisa que a deixava calada e imersa em lágrimas.

Se fosse doença e fosse mortal, o tempo que já estabelecida estava a coisa haveria de ter dado seu veredicto final. Ante o espelho face não reconhecia, 'estou tão velha, velha de sentimentos', sobrevoavam as moscas dos dias do encarceramento. Morria perante uma vida que corria solta em sorrisos infantis, abraços saudosos. Morria em desconforto com seu corpo intensamente magro,soterrado por olheiras e milhões de adeus.

Completara mais um ano, e fora um fardo, carregou cruz ainda mais pesada. Deram-lhe os parabéns, 'aos mortos, os vivos', trancou-se em seus devaneios. Poderia estar distante da magnitude do sangue que consome, veria pássaros a cantarem continuamente, esqueceria tanto apego. Com os olhos entreabertos avistou seus amigos ralos, escassos. 'Quanto de mim já doei, e por inteira me apeguei aos cacos?' Seguiu com a lágrima que lhe acompanhava há tanto, em um mesmo rumo, em uma desarmonia de afetos.

E a noite chegava latejante, impiedosa sorria sob seu véu translúcido e negro. Tornava os minutos lentos, os ruídos, agudos e as angústias eram a companhia constante, ao lado do abajur empoeirado, as lembranças entristecidas e os pelos dos gatos. Sofria só e socorria recordações de um navio submerso no oceano. Não era Severina, mas era morte em vida. Comprimidos corroíam seu estômago sem efeito. As horas eram inimigas dos olhos ardentes. Acompanhou as lágrimas com um resto de uísque, revirou-se incontáveis vezes na estreita cama.

O sol despontava, vislumbrou novamente sua imagem e somente as marcas das lágrimas no corredor. Acordou, permaneceu, levantou, 'mais um dia sem ter fim'. O café era seco, o pão era amargo. Sua lágrima rotineira retornou. Abriu as janelas e como se não o fizesse, as fechou. A lágrima rotineira... retornou.


 

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